Sem título

Raphael Bianco

Técnica acrílica e óxido de ferro sobre tela

35 x 50 cm

2020

R$ 3.800

Conversa com Raphael Bianco

O trabalho de Raphael, conforme ele próprio nos conta, se alimenta, especialmente, para além da história da arte, cinema, literatura, os almanaques, etc,  dos objetos coletados em ferros-velhos da Grande Vitória, num processo que pode ser comparado a uma espécie de garimpagem de fragmentos do mundo material e simbólico que nos envolve.

Raphael interfere nesses objetos estabelecendo novas relações entre eles e os reorganiza em torno de si, conforme mostram as imagens do seu atelier e as próprias pinturas demonstram.

Com esses encadeamentos, Raphael vai criando um microcosmo   muito variado, uma espécie de miniatura poética do mundo. Universo muito rico em formas, cores, signos e materialidades.

Esses objetos, então descartados do seu uso original, preteridos em suas funcionalidades, são reabilitados pelo artista, sempre de modo surpreendente, conferindo-lhes singularidade.

Os produtos da recolha, são muitas vezes interferidos, restaurados ou modificados e reunidos, como num processo de edição cinematográfica, criando assim, narrativas mais ou menos aleatórias, estruturadas a partir da junção de memórias alheias e das próprias memórias do artista. Tudo isso cosido («costurado») e «cozido» em fogo brando no laboratório do alquimista.

Ao meu ver, esse ambiente elaborado, mesmo irresistível, dada a riqueza de possibilidades de leituras e fruição, vai alimentar as construções materiais, formais, conceituais e afetivas de Raphael e repercutir como pinturas singulares, inventadas e reinventadas a partir desses fragmentos do mundo.

Dalí surgem paisagens surpreendentes, naturezas mortas espetaculares, que, se por um lado, remetem, de vários modos, à tradição dos séculos de ouro da pintura, por outro, também remetem ao modernismo, e, principalmente, atualizam a discussão da representação na contemporaneidade e a viabilidade da pintura como consequência desse diálogo entre a tradição e a pós-modernidade.

Nesse processo criativo intenso, a memória faz a ligação entre temporalidades diversas. Seja através das camadas que impregnam as matérias desses utensílios, ou através da memória recuperada, revivida no processo   que redimensiona o tempo, reinventa a historia, reconfigura o mundo com interpretações muito pessoais fixando-as nas telas em imagens pictóricas.

Há uma série de pinturas, onde a imagem da grade da casa da memória da infância de Raphael ocupa a totalidade da superfície da tela. Essa estrutura está no primeiro plano e remete diretamente para a noção de janela renascentista e concomitantemente para a grade cubista. Dois momentos fundamentais, emblemáticos e dialéticos da historia da arte ocidental.

Enquanto o paradigma da representação da pintura da tradição clássica aprofunda e extravasa o plano pictórico, nega a planaridade da tela, afirmando, assim, a perspectiva do espaço, solicitando ao espectador olhar para além do plano, convidando-o a entrar virtualmente no tema,  caminhar virtualmente na paisagem ou participar da cena representada. O paradigma posto pelo modernismo, principalmente pelo cubismo, por sua vez, vai fechar essa janela e obrigar o espectador a olhar a pintura propriamente dita, enquanto superfície bidimensional, com sua materialidade intrínseca em sua autonomia essencial, deixando ver as marcas do artista, as pinceladas, os grumos de tinta ou mesmo, objetos colados no espaço que até então era da representação. Raphael dialoga com tudo isso.

Cor, linha. Forma, superfície, textura, espaço, matérias diversificadas, tudo está lá se oferecendo aos olhos, à sensibilidade do espectador

Raphael em seu trabalho opera como uma interface entre esses dois paradigmas da pintura, por exemplo,  quando pinta imagens e depois lava e esfrega as telas, borrando as tintas e esgarçando os planos, ativando, assim, a superfície do quadro, para além de uma condição passiva de suporte para a representação das imagens, para organizar as narrativas e cenas, potencializando o caráter plano da tela e a materialidade da tinta, conforme reivindicou Greenberg, exaltando o caráter bidimensional incontestável da pintura.

Essas articulações que o artista tensiona, muito me interessam e dão um caráter muito potente aos seus trabalhos, ciente, obviamente, da impossibilidade de evocar as grandes narrativas da história ou enfrentar grandes temas, posto que sempre prefere recorrer ao mais ordinário (digo ordinário, no melhor sentido, do cotidiano, do simples) e essencial da vida. Embora, fique difícil dizer, de bom grado, que o presente, nossas vidas, nossa existência  e nossas reminiscências, pelo menos para nós próprios, tenham uma  importância menor.

Lando, Lisboa. 27 de agosto de 2020.

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